Constelação familiar. O que é?
A constelação familiar mostra que muitos de nossos problemas, doenças, incompreensões e sentimentos negativos estão conectados a outros familiares, especialmente os antepassados que enfrentaram essas mesmas adversidades. Ou seja, há repetição de comportamentos a cada geração, mesmo que de uma maneira inconsciente.
Bert Hellinger, o maior expoente em termos de constelação familiar, e desenvolvedor do método da forma que a conhecemos e praticamos hoje, propôs que há uma “consciência de clã” em todos nós, que é norteado por simples “ordens arcaicas” ou “ordens do amor”, que são pertencimento, equilíbrio entre dar e receber e hierarquia.
O amor é o objeto do trabalho e ordená-lo é o objetivo. Fora da ordem o amor existe, mas se torna um amor desequilibrado, por muitas vezes um amor doente. As ordens atuam em nosso inconsciente como leis naturais, e a conexão harmoniosa com essas ordens nos dão uma sensação de paz e nos faz sentir acolhidos e pertencentes a um grupo. E é essa paz e harmonia, para o cliente e seu sistema familiar, que buscamos alcançar por meio desta abordagem profunda e inovadora.
Aceitar a vida é aceitar incondicionalmente os pais.
Ao sermos concebidos dentro de uma família, para muito além de um patrimônio genético e eventuais bens materiais, também herdamos de nosso sistema familiar complexos esquemas de comportamento, traumas e condicionamentos, todos profundamente enraizados em nosso inconsciente.
Por outro lado, é certo concluir que somos metade pai, metade mãe. Não apenas em relação aos vinte e três cromossomos herdados de cada um deles, mas também em nosso inconsciente e personalidade. Temos ambos os pais dentro de nosso ser, e o julgamento, rejeição ou qualquer sentimento negativo em relação a um deles significa, também, um sentimento negativo em relação a nós mesmos. Aceitar a vida é aceitar incondicionalmente os pais, sem “mas”, “porém” ou qualquer objeção quando a nossa origem.
Em outras palavras, a autoimagem pode ser definida pela imagem que fazemos de nossos pais em nosso inconsciente. Se eu vejo meus pais como insuficientes, eu me vejo como insuficiente. Por outro lado, ao aceitar a vida sem julgamentos e com amor incondicional os pais, independentemente das circunstâncias positivas ou negativas passadas durante o transcorrer do amadurecimento humano, especialmente na infância, temos todas as possibilidades em nossas mãos. E para aceitar esta realidade é necessária uma postura ativa e incondicional, denominada por Bert Hellinger de tomar. Nas palavras do próprio Hellinger:
“Tomar é para mim um processo básico. Eu estabeleço um limite bem claro entre aceitar e tomar. O aceitar é benevolente. Tomar algo significa: Eu tomo assim como é. Esse tomar é humilde e concorda com os pais assim como eles são. Quando faço isso, eu também concordo comigo mesmo, assim como eu sou. (...) Quem toma essa atitude fica em paz consigo mesmo e com os seus pais e é independente.” (Constelações Familiares. O Reconhecimento das Ordens do Amor. Cultrix, 2007, p. 94)
Portanto, conforme nos ensina Bert Hellinger, tomar a vida de forma incondicional pode ser o primeiro passo para uma mudança positiva em nossas vidas, pois deixamos de fantasiar com algo que não existe, e trabalhamos com o que realmente temos em nossas mãos, ou melhor, em nossa alma. Assim é possível superar os conflitos internos em relação a nós mesmos.
Compreendendo seus sentimentos: O movimento primário interrompido.
Ao caro leitor que busca expandir seu conhecimento (inclusive o autoconhecimento), e especialmente para a completa compreensão do caso que vamos apresentar, é importante o entendimento da dinâmica inconsciente que chamamos de “movimento primário interrompido”, conforme explicaremos nas próximas linhas.
De modo geral, bloqueios e sentimentos negativos como raiva, abandono, depressão, sentimento de desprezo em relação aos pais geralmente têm um fundo inconsciente e sistêmico, do qual não temos domínio racional. Muitas vezes esses sentimentos têm origem no que Hellinger denomina de “movimento primário interrompido”. Trata-se de um trauma pessoal originado na infância quando a criança sente-se distanciada ou abandonada pelos pais (um deles ou ambos). Pode ocorrer, por exemplo, em uma longa internação hospitalar, um acidente, em casos de adoção, ou mesmo em situações cotidianas e simples, como quando a criança permanece chorando no berço sozinha por algum tempo. Isto é, o movimento primário interrompido é uma consequência da interpretação do inconsciente da criança acerca de alguma situação de distância em relação aos pais.
Ao sentir-se abandonada pelos pais, a criança então bloqueia inconscientemente os sentimentos de amor e afeto em relação aos mesmos, visto que sente medo de necessitar novamente deles, não tê-los por perto e voltar novamente ao sentimento de dor e abandono. As consequências de um movimento primário interrompido são superadas, dentro do contexto da constelação familiar, quando o movimento original (aproximação da criança com os pais) é retomado e lavado a termo, como em um abraço entre a criança e a mãe ou o pai, representados por participantes de grupos de constelação ou pelo próprio facilitador em sessão individual.
Caso: A dificuldade em engravidar.
Um dos casos mais relevantes e simbólicos que atendi trata-se de uma jovem de trinta e dois anos e as consequências de um movimento primário interrompido em direção à sua mãe, que, significa como visto acima, um trauma pessoal originado na infância quando a criança sente-se distanciada ou abandonada pelos pais. Para preservar a privacidade da cliente da qual tratarei nesse capítulo, ela será denominada apenas como cliente.
Seu tema era a dificuldade em engravidar, visto que estava casada há nove anos e tentando a gestação há cerca de cinco anos. O fator agravante e que praticamente impossibilitava a gestação era o diagnóstico de endometriose, uma doença caracterizada pela presença do endométrio – tecido que reveste o interior do útero – fora da cavidade uterina, ou seja, em outros órgãos da pelve. Aproximadamente 60% das mulheres com endometriose sofrem dores e infertilidade[1]. Esse era o quadro trazido pela cliente.
Anamnese.
Na entrevista inicial a cliente informa que tivera uma infância difícil em relação à mãe, que foi distante e não haveria muito afeto. Havia, já na idade adulta, conflitos na relação entre ambas. Essa era a chave da questão.
Em termos gerais, tomamos da mãe aspectos da vida ligados à prosperidade, afeto íntimo, saúde, autoestima e segurança. Quando há julgamentos, sentimento de superioridade ou pena em relação à mãe há também bloqueio em relação aos aspectos da vida representados pela figura materna. Para as mulheres, o julgamento em relação à própria mãe em geral acarreta um bloqueio em relação à feminilidade, incluindo as crenças e imagens inconscientes sobre a capacidade de ser mãe.
A constelação e as frases de solução.
Após colher mais algumas informações sobre a família próxima (pais e avós), colocamos a constelação de forma oculta[2]. De fato, a dinâmica relevante foi a relação entre cliente e a própria mãe. A representante da mãe (que denominaremos apenas como mãe) permaneceu em um canto da sala, distante e de frente para a parede.
A representante da cliente não conseguia olhar para a mãe. Ficou claro que a mãe, em razão de um relacionamento difícil com a própria mãe (avó da cliente), não estava totalmente disponível para seu papel materno. Por sua vez, a representante da cliente relatou que via a mãe como menor, com pena. Após revelar o papel de cada representante, a cliente confirmou que aquela dinâmica fazia sentido no contexto do relacionamento com a mãe, que desde pequena via a mãe como uma pessoa fraca, não havendo contato emocional próximo entre elas.
Convidei a cliente para tomar seu lugar na constelação. Ao realizar este movimento, os sentimentos de raiva e ressentimento transpareciam no olhar da cliente, que chorava ao olhar a mãe. O diálogo, por meio de frases de solução sugeridas por mim e ditas pela representante da mãe, ocorreu da seguinte forma:
MÃE: “Olá, filha. Realmente, eu não estava totalmente disponível como mãe. Sinto muito por isso. Mas, eu sou sua mãe, eu sou a grande, você a minha filha, a pequena. Ao que custou a mim e a você, eu te dei a vida. Agora eu libero você para seguir o seu destino, como adulta”.
O sentimento descrito pela cliente após as frases foi de certo alívio, mas ainda sim com certa raiva. Portanto, sugeri as seguintes frases, que foram repetidas pela cliente, muito comovida:
FILHA/CLIENTE: “Mãe, eu sinto raiva de você (frase repetida diversas vezes). Raiva porque não pude receber o seu carinho e amor, pois doía muito te ver sofrer e não poder fazer nada. Mas agora eu vejo: eu sou apenas a filha, a pequena; você é a mãe, a grande. Agora aceito seu destino e aceito tudo o que vem de você, da forma que foi, e com amor. Obrigada pela vida, agora posso passa-la adiante”.
Posteriormente, utilizando uma bolsa pesada, simbolizamos que a cliente entregava à mãe o seu próprio destino e, após este ato, a cliente pôde voltar a ser pequena ante a mãe, ajoelhando diante desta, e lhe abraçando como a criança abraça a mãe, retomando e levando a termo o movimento primário de amor interrompido entre filha e mãe. Cabe destacar a forte emoção da cliente quando da retomada deste movimento.
Finalizando a constelação, posicionei a mãe atrás da cliente, com a avó atrás da mãe, e o representante do marido de frente para a cliente. O representante do marido, que havia se mostrado alheio à dinâmica durante toda a constelação, recebeu de forma carinhosa o olhar da cliente e ambos se abraçaram. Sugeri as seguintes frases para ambos:
“Eu realmente não estava tão disponível para nosso casamento, e especialmente para passar a vida a adiante. Eu assumo a minha parte de responsabilidade. Eu estava olhando para trás, para questões da família. Agora já as deixei e, no tempo certo, talvez possamos aumentar nossa família. Obrigada por estar ao meu lado”.
Segundo a cliente e o representante do marido, as frases fazem sentido e trazem sensação de alívio. Encerrada a constelação, algumas orientações básicas de praxe são passadas para a cliente e retomados os trabalhos com outros participantes.
Depoimento da cliente.
Cerca de sete meses após a constelação, recebo da cliente a seguinte mensagem:
“Então, como constelamos sobre minha dificuldade de engravidar, no final você me disse q independente do tempo que demorasse, caso desse algum resultado era para eu avisar
Estou compartilhando contigo a notícia de que estou grávida de 18 semanas (...)
Obrigada pelo teu trabalho!!!!” (sic)
Conclusão.
Por certo o resultado positivo para a cliente não foi alcançado por mim enquanto facilitador, mas sim pela própria cliente e seu marido. Em especial a cliente, que acreditou no processo, absorveu a imagem de solução e se permitiu aceitar a vida que lhe foi passada por seus pais, sem maiores reinvindicações, estando liberada de reinvindicações originadas ainda na infância. Uma vez tomada incondicionalmente a vida recebida, especialmente em relação à própria mãe, a cliente pôde passa-la adiante e, então, ser também mãe, tão humana e imperfeita quanto a sua própria genitora.
A constelação familiar não é “apenas” uma terapia, mas sim uma filosofia aplicada à vida, um exercício diário das ordens do amor. Portanto, o trabalho realizado em uma sessão de constelação familiar, seja em grupo ou individual é o impulso para uma mudança de postura interna, um entendimento maior sobre o contexto sistêmico no qual se está inserido. Costumo dizer que uma sessão de constelação familiar perdura, dentro do inconsciente, cerca de 40 anos, visto que é necessário tomar a imagem de solução surgida na constelação e aplica-la no cotidiano, dia após dia. Ou seja, não se pode prometer, antes ou depois de uma constelação familiar, que a solução almejada pelo cliente será efetivamente alcançada, pois o processo não está nas mãos do facilitador, mas sim do cliente e de sua postura ante seu sistema, seu destino, suas possibilidades e limitações.
Acredito que este caso nos mostra que nossa postura interna frente aos nossos pais, nossa autoimagem inconsciente e as possibilidades que temos frente aos desafios que não por acaso enfrentamos, tem estreita relação. Quando nos colocamos como pequenos frente aos nossos pais é possível nos apropriarmos da vida que deles recebemos, mesmo carregando ainda por um tempo um resquício da dor de traumas, que um dia poderá ser transformada em gratidão pela vida recebida.
E a gratidão pela vida recebida nos mostra a grandeza dessa simples e humilde condição que é estar vivo e a possibilidade de passar uma parte dessa vida para frente e, junto com ela, uma parte de todos aqueles que fazem parte de nossa história, com aquilo que custou a eles e a nós. Assim, assumimos responsabilidade pela própria vida e por mantê-la perene e saudável o quanto for possível. E isso é o bonito.
Desejo tudo de bom aos caros leitores.
att, Gustavo O. Lima
Texto publicado inicialmente como parte do livro “Constelação Familiar Sistêmica - Cases e Abordagens no Atendimento”, [coord.] Adréia Roma, Carmen Mírio, Fabiana Quesada. 1. ed. - São Paulo: Leader, 2020. [1] https://www.gineco.com.br/saude-feminina/doencas-femininas/endometriose/ [2] Na forma oculta, os participantes não são informados previamente sobre qual personagem irão representar. Nem mesmo o cliente tem esta informação, visto que os nomes dos personagens são anotados em pequenas fichas entregues aos representantes, que não as leem. Apenas na parte final do trabalho, nos movimentos de solução, os papéis são revelados.
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